30 de janeiro de 2011

XIV Curso de Difusão Cultural CEA/USP - "Aspectos da Cultura e da História do Negro no Brasil"

Público Alvo: 
Professores das Redes Pública e Particular de Ensino e interessados em geral.
 
Objetivo: 
Capacitação dos professores das redes pública e particular de ensino no aprendizado dos aspectos da cultura e da história do negro no Brasil, propiciando acesso a material de apoio e didático para ser utilizado em sala de aula, embasados nos conhecimentos apreendidos em cada temática que certamente, serão de utilidade prática.
 
Carga horária: 
42.00Horas

Coordenação: 
Prof. Dr. Kabengele Munanga, da FFLCH/USP.
 
Ministrantes: 
Carlos Subuhana, Dilma de Melo Silva, Ismael Giroto, Kabengele Munanga, Margarida Maria Taddoni Petter, Mauricio Waldman e Tania Celestino de Macêdo.
 
Promoção: 
Centro de Estudos Africanos 
 
Períodos e Turmas
Início e fim da aula: 
17/03/2011 - 30/06/2011
Horário das aulas: 
5ª feira, 19:00 às 22:00
Local das aulas: 
Prédio de Filosofia e Ciências Sociais, Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - salas 105, 107 e 109. São Paulo, SP.
 
 
Para mais informações, acesse: http://sce.fflch.usp.br/node/160

Um confronto histórico entre Jean Rouch e Ousmane Semène em 1965: “Vocês nos olham como se fôssemos insetos”



Este diálogo de 1965 se deu entre dois grandes cineastas – um senegalês, o outro francês – cujos principais filmes tem como tema a África. Na época da conversa, o francês Jean Rouch (1917-2004) estava na vanguarda do cinema europeu. Aclamado como um diretor etnográfico, Rouch foi o primeiro a usar o tema “cinéma vérité”, aplicando-o a “Crônica de um verão” (1960), seu filme mais conhecido. Significando literalmente “cinema verdade”, “cinéma vérité” é um gênero que mistura fato e ficção e que foi um influente movimento cinematográfico dos anos 1950 e 60. O apego de Rouch por temas africanos durante sua vida começou em 1941. Seus documentários da África Ocidental, como “Les hommes qui font la pluie” (1951), “Les maîtres fous” (1955) e “La pyramide humaine” (1961) mostram sua fascinação por magia e ritual. (...) “Vocês nos olham como se fôssemos insetos,” contesta Ousmane Sembène nesta conversa.

Diretor, produtor e escritor de grande destaque senegalês, Ousmane Sembène (1923-) ajudou a definir a África moderna da era pós-colonial. O sucesso premiado de seu filme “Borom Sarret” no Tours International Festival em 1963, na França, dois anos antes que este diálogo acontecesse, trouxe o cinema africano ao cenário mundial. O comentário de Nwachukwu Frank Ukadike considerava os filmes de Sembène no contexto de um cinema revisionista feito por africanos negros e seu objetivo de dar uma voz autêntica para a África moderna. Neste “confronto histórico” entre Sembène e Rouch a questão da autenticidade – de quem pode representar verdadeiramente a África – é, mais uma vez, sublinhada enfaticamente. Quais são os argumentos de Rouch a favor do ponto de vista etnográfico? Como Sembène reage? Qual é o dilema para o artista e a audiência? Como resolve-lo?

Fonte: The Short Century: Independence and Liberation Movements in Africa 1945-1994, editado por Okwui Enwezor, p.440. Munich, London, New York: Prestel, 2001. Transcrito por Albert Cervoni e traduzido para o inglês por Muna El Fituri.



Ousmane Sembène: Cineastas europeus, como você, continuarão a fazer filmes sobre a África uma vez que haja vários cineastas africanos?

Jean Rouch: Isso dependerá de várias coisas, mas meu ponto de vista, no momento, é de que eu tenho uma vantagem e uma desvantagem ao mesmo tempo. Eu trago o olhar do estranho. A própria noção de etnologia está baseada na seguinte idéia: alguém confrontado com uma cultura que é estranha a ele vê certas coisas que as pessoas de dentro dessa mesma cultura não vêem.

Ousmane Sembène: Você diz olhar. Mas no ramo do cinema, não basta ver, é preciso analisar. Estou interessado no que vem antes e depois do que nós vemos. O que eu não gosto na etnografia, sinto dizer, é que não basta dizer que um homem que nós vemos está andando; precisamos saber de onde ele vem, para onde ele vai.

Jean Rouch: Você está certo nesse ponto porque nós não chegamos ao objetivo de nosso conhecimento. Acredito também que para estudar a cultura francesa, a etnologia a respeito da França deveria ser praticada por pessoas de fora. Se algém quer estudar Auvergne ou Lozere, é preciso ser Briton. Meu sonho é que africanos produzam filmes sobre cultura francesa. De fato, você já começou. Quando Paulin Vieyra fez Afrique sur Seine, seu objetivo era de fato mostrar estudantes africanos, mas ele os estava mostrando em Paris e estava mostrando Paris. Poderia haver um diálogo e você poderia nos mostrar o que nós mesmos somos incapazes de ver. Estou certo de que a Paris ou a Marselha de Ousmane Sembène não é a minha Paris, minha Marselha, de que elas não tem nada em comum.

Ousmane Sembène: Há um filme seu que eu adoro, que eu defendi e continuarei a defender. É Moi, um noir. Em princípio, um africano poderia tê-lo feito, mas nenhum de nós, na época, tinha as condições necessárias para produzi-lo. Acredito que é necessária uma continuação para Moi, un noir – penso nisso o tempo todo – a história desse jovem que, após a Indochina, não tem emprego e acaba na cadeia. Depois da Independência, o que acontece com ele? Alguma coisa mudou para ele? Acredito que não. Um detalhe: esse jovem tinha seu diploma, agora acontece que a maioria dos jovens delinquentes tem diplomas escolares. Sua educação não os ajuda, não os permite viver uma vida normal. E, finalmente, sinto que até agora dois filmes de valor foram feitos sobre a África: o seu, Moi, un noir, e Come back Africa, do qual você não gosta. E há um terceiro, de uma ordem particupar estou falando do Les Statues Meurent Aussi

Moi, un noir (1958)
Jean Rouch: Gostaria que você me dissesse porque não gosta dos meus filmes puramente etnográficos, aqueles nos quais nós mostramos, por exemplo, a vida tradicional?

Ousmane Sembène: Porque vocês mostram, vocês fixam uma realidade sem ver a evolução. O que eu tenho contra você e os africanistas é que vocês nos olham como se fôssemos insetos.

Jean Rouch: Como Fabre [Jean Henri Fabre (1823-1915), famoso por seu estudo do comportamento e anatomia dos insetos] teria feito. Defenderei os africanistas. São homens que certamente podem ser acusados de olhar para homens negros como se fossem insetos. Mas podem haver Fabres por aí que, ao examinar formigas, descobrem uma cultura similar, que é tão significativa quando a deles próprios.

Ousmane Sembène: Filmes etnográficos com frequência nos prejudicaram.

Jean Rouch: Isso é verdade, mas é culpa dos autores, porque com freqüência trabalhamos precariamente. Não muda o fato de que na situação atual podemos fornecer testemunhos. Você sabe que há uma cultura ritual na África que está desaparecendo: griots morrem. É preciso reunir os últimos traços vivos dessa cultura. Não quero comparar africanistas com santos, mas eles são monges infelizes encarregados da tarefa de reunir fragmentos de uma cultura baseada em uma tradição oral que está em processo de desaparecimento, uma cultura que me arrebata por sua importância fundamental.

Ousmane Sembène: Mas etnógrafos não coletam fábulas e lendas apenas dos griots. Não se trata somente de explicar máscaras africanas. Tomemos, por exemplo, o caso de outro de seus filmes. Les Fils de I'Eau. Acredito que vários espectadores europeus não o entenderam porque, para eles, esses ritos de iniciação não tiveram significado nenhum. Acharam o filme bonito, mas não aprenderam nada.

Jean Rouch: Ao filmar Les Fils de I'Eau, pensei que assistindo o filme os espectadores europeus poderiam fazer apenas isso, ir além do velho estereótipo de negros como “selvagens”. Eu simplesmente mostrei que apenas porque alguém não participa de uma cultura escrita não quer dizer que ele não pense. Há também o caso de Maitres Fous, um de meus filmes que provocou debates acalorados entre colegas africanos. Para mim, ele testemunha a maneira espontânea pela qual os africanos mostrados no filme, uma vez que fora de seu meio, livram-se desse ambiente industrial e metropolitano europeu ao representá-lo, fazendo dele um espetáculo. Acredito, entretanto, que problemas de recepção aparecem. Um dia, eu exibi o filme na Filadélfia em um congresso antropológico. Uma senhora veio até mim e perguntou: “posso ficar com uma cópia?”. Eu a perguntei por que. Ela me disse que era do sul e... ela queria mostrar... esse filme para provar que negros eram de fato selvagens! Eu recusei. Entende, eu lhe dou razão.

Em acordo com os produtores, a exibição de Maitres Fous havia sido reservada para casas de arte e cinemas. Acredito que não se deveria trazer tais filmes para uma audiência que é grande demais, mal informada, e sem devida apresentação e explicação. Também acredito que as raras cerimônias das pessoas em Maitres Fous fazem uma contribuição primordial para a cultura mundial.



Idrissa Ouedraogo - Yam Daabo (1986)



Burkina Faso | Idrissa Ouedraogo | 1986 | Drama | IMDB
More | Legenda: Português/English (hardsub)/Japonês (hardsub)
80 min | XviD 512 x 384 | MPEG1/2 L3 172 kb/s | 25.000 fps 700 MB

Yam Daabo / A Escolha 
Um triângulo amoroso encenado nas paisagens da Burquina Fasso é o que nos apresenta, num de seus primeiros trabalhos, o diretor burquinabé Idrissa Ouedraogo. Trata-se de uma simples história humana e ao mesmo tempo uma profunda meditação sobre a justiça divina. O pano de fundo é a história de uma família pobre que migra para o sul fugindo da miséria e se depara com surpresas.
Familiares do diretor fazem parte da maioria do elenco. 

28 de janeiro de 2011

Ousmane Sembène - La noire de... (1966)


Senegal | Ousmane Sembène | 1966 | Drama | IMDB
Francês | Legenda: Espanhol/Português

65 min | XviD
640 x 480 | 1.390 kb/s | 128 kb/s MPEG1/2 L3 | 29.970 fps
609,3 MB

La noire de... (A negra de...)
Baseado em um conto homônimo de Sembene publicado em 1961, "La noire de..." conta a história de uma jovem senegalesa que vai trabalhar na França com o casal de franceses que a empregava em Dakar. Inicialmente animada com a perspectiva de conhecer a França, ela logo se vê desiludida, notando diferenças no tratamento que os patrões lhe dão. O filme trata de modo único os efeitos do colonialismo, do racismo e dos conflitos trazidos pelas identidades pós-coloniais na África e na Europa. Baseado em um caso real.





 

Crítica: Trabalho doméstico feminino 
e política do Terceiro Mundo em "La noire de..."

por Lieve Spass
 
Para Ousmane Sembene, o mais destacado diretor africano, o cinema pode tornar visível
os abusos do poder e tornar manifesto o que os governos gostariam de manter escondido. O cinema pode falar ao mundo ocidental sobre seu poder opressivo e a Senegal, seu país, e a outros países do Terceiro Mundo sobre sua opressão. O cinema, acredita Ousmane, supera o problema apresentado pelo analfabetismo no Terceiro Mundo, uma vez que é acessível tanto a letrados quanto a iletrados. Isso explica porque Sembene passou a usar o wolof ao invés do francês em seus filmes recentes. Ao usar o cinema para chamar atenção para a dicotomia Terceiro Mundo/Ocidente, Sembene contribui consideravelmente para o desenvolvimento do filme político.

Ousmane Sembène nasceu em Senegal em 1923. Começou a vida como pescador e depois foi para a École de Céramique at Marcassoum. A partir daí, seguiu para Dakar e trabalhou como encanador, pedreiro e aprendiz de mecânico. Serviu o exército francês na Segunda Guerra e após isso se tornou estivador e líder sindical em Marselha. Ansioso para fazer filmes, ele se voltou para Jean Rouch e outros cineastas, mas falhou em conseguir seu suporte. Em Moscou, ele passou um ano aprendendo cinema com o diretor pró-Stalinista Mark Donskoi. Seus filmes mais importantes são: "Borom Sarret" (1963), retratando o dia de um carroceiro em Dakar; "Tauw" (1971), mostrando o desespero de uma senegalesa de 20 anos que procura por trabalho nas docas de Dakar; "Emitai" (1971), no qual as mulheres de uma vila oferecem resistência em um conflito com os colonialistas franceses. "Xala" (1974) mostra o efeito paralizante de algumas das próprias tradições  africanas, bem como da opressão ocidental, uma opressão prolongada pelo governo do Senegal. Finalmente, o filme mais recente, "Ceddo" (1977), censurado no Senegal, foca nas estruturas islâmicas da opressão no período inicial da islamização. As experiências pessoais e realizações artísticas de Sembene se mesclam. Cada um de seus filmes questiona um problema social existente e também reflete as raízes políticas de Sembene, quer dizer, aquele de um intelectual africano europeizado com ligações norte-americanas, um artista comunista influenciado pelo neorealismo.

"La noire de..." é um filme enraizado na sociedade senegalesa. Isto quer dizer que a história da moça negra não representa uma história contida em si mesma, mas uma narrativa originada em uma sociedade existente. "La noire de...", portanto, exemplifica a importância de alguns filmes ficcionais chave para o estudo de uma sociedade. "La noire de...". O título em francês, "La noire de..." [A garota de...], contém uma ambiguidade. As reticências que seguem a preposição deixam indeterminado se ele significa a origem, quer dizer, vinda de um lugar específico, ou se é a forma possessiva. Esta indicaria que a garota negra é uma posse de alguém. As reticências evocam ambos os sentidos.

A composição visual de "La noire de..." explora a óbvia dicotomia do preto/branco. O cinema em preto e branco fornece a base formal e semântica do filme. Diouana veste um vestido branco com bolinhas pretas; sua mala é preta. O apartamento parece completamente feito em um esquema preto e branco. A comida preparada cai na mesma categoria - café preto, leite pasteurizado, arroz branco. Até o whisky consumido abundantemente pelos franceses carrega o selo "Preto e Branco". A oposição é encenada mais dramaticamente quando a câmera foca no corpo inerte de Diouana na banheira branca.

Em uma leitura supérflua, tal oposição pode parecer a marca de um diretor inexperiente. Apesar disso, o filme, ainda que um dos primeiros de Sembene, já contém sinais demais de sutileza para permitir tal interpretação. A estrutura binária óbvia do filme corresponde ao brutal sistema binário que está por trás de qualquer sistema de exploração e opressão, um sistema que divide o mundo em duas categorias opostas: os oprimidos e os opressores. Construindo uma rede de contrastes entre preto/branco, o filme não estabelece uma oposição entre mulher/homem com as mesmas linhas. A mulher negra é mais diretamente explorada não por um homem, mas por uma mulher branca. Além disso, ela obtém permissão de sua mãe, e não de um homem, para seguir seus patrões até a França. O trabalho doméstico pode, nesse sentido, ser apresentado como uma forma de exploração de todas as mulheres. Mas o contexto para o trabalho doméstico criado no filme sugere uma ligação entre o trabalho doméstico feminino e a estrutura política geral.

Analfabeta, Diouana não tem conhecimento da França além do adquirido através dos sedutores relatos verbais das francesas e das lustrosas fotografias de uma revista Elle trazida por seu namorado em uma de suas reuniões em Dakar. Sua imagem da vida na França é formada inteiramente a partir dessas representações das mulheres. Ela espera encontrar belas lojas, onde ela comprará roupas elegantes com o salário que ganha. A mulher da Elle em roupa de banho a leva a imaginar sua própria fotografia tirada na praia e enviada a Dakar, onde "eles ficarão com inveja". Ao invés disso, Diouana se torna virtualmente uma prisioneira em um apartamento francês. A França com que ela sonha é substituída pela quantidade de quartos que ela limpa, o barulho dos vizinhos que brigam no andar de cima, ou o "buraco negro" que ela percebe da janela enquanto olha para a baía negra dos Antibes.

Quanto mais Diouana fantasia a imagem apresentada a ela em Dakar, mais ela acumula raiva da francesa, que contribuiu para a criação da imagem. Ao invés de comprar belas roupas, Diouana é alvo de escárnio por parecer elegante demais nas roupas velhas da patroa. Ela recebe um avental e é solicitada que retire seus sapatos de salto alto em estilo ocidental. Enquanto carrega desalento em seu monólogo interior, ela nunca pronuncia uma palavra em voz alta além de "Sim, senhor" e "sim, senhora". O mais doloroso contraste entre expectativa e realidade diz respeito a "sua foto na praia". De fato, ela nunca é fotografada no mar. Ao invés disso, o espectador vê seu corpo inanimado na banheira. Imediatamente após isso, há um corte para pessoas em férias vestidas com roupas de banho na praia, que estão lendo a notícia de seu suicídio, que agora se tornou uma reportagem jornalística na seção de "acontecimentos locais" do jornal.

Ainda que o filme enfoque quase exclusivamente a situação de Diouana, sua exploração e morte não são apresentados como eventos isolados. O filme as liga à morte de outros senegaleses na Europa, nomeadamente aqueles que morreram na Primeira e Segunda Grande Guerras. Em seu estudo, Marsha Landy menciona essa ligação. Entretanto, a dimensão política dessa referência precisa de uma ênfase maior, especialmente à luz da atitude do namorado. Pouco antes da partida de Diouana para a França, ela e o namorado estão próximos ao monumento de  comemoração destes eventos. Uma breve visão de veteranos colocando uma coroa de flores no monumento passa pela mente do amigo. Quando Diouana, inconsciente da importância do monumento, dança de pés descalços sobre ele, festejando sua partida iminente para a França, o amigo fica indignado com o "sacrilégio" de Diouana e lhe diz que desça imediatamente.

A sequência tem uma implicação dupla. Primeiro, como menciona Landy, a dança de Diouana em um monumento de guerra profetiza sua morte. Segundo, a partida de Diouana para a França e seu suicídio lá se tornam ligados ao envolvimento político senegalês nas Grandes Guerras. O respeito do amigo pelo monumento revela o orgulho que ele carrega pela coragem e sacrifício de seus compatriotas senegaleses. Porém, ao ligar as duas formas de sacrifício, o filme sugere que seu idealismo é politicamente ingênuo. A ida de Diouana para a França faz um paralelo com a participação dos soldados nessas guerras. Esses soldados haviam ido para lutar pela liberdade da França; tiveram a "honra" de morrer pela "pátria mãe". De modo semelhante, o trabalho de Diouana liberta a mulher francesa e sua morte, ainda que auto-inflingida, não é diferente da do soldado. Seus pertences são devolvidos a Dakar. Suas roupas, como o uniforme de um soldado morto, são levados de volta para a mãe e uma quantia de dinheiro é oferecida em compensação. (1) A ligação de Diouana com os soldados sugere que por trás da exploração pública se esconde outra, mais profunda, escondida, e política.

Na França, a mulher francesa é retratada com a opressora manifesta, abertamente hostil e desrespeitosa. Em contraste, seu marido, o patrão branco, é retratado como um cavalheiro francês humano e moderadamente gentil, como alguns de seus gestos sugerem. Ele carrega a mala de Diouana, pergunta sobre sua viagem e recolhe o dinheiro que ela deixou cair. Ele demonstra compreensão por seu humor deprimido, compreende a sua possível nostalgia e necessidade de sair e até sugere férias para ela. Além disso, o filme não retrata uma exploração sexual estereotipada do patrão branco sobre a empregada. Ao contrário, o filme salienta sua própria ausência - em uma situação em que tal abuso sexual poderia ocorrer quando meio bêbado ou entediado, o patrão permanece sozinho com a doméstica negra. Em um confronto físico entre sua mulher e Diouana pela máscara africana, sua mulher vê apenas a "ingratidão" de Diouana. Em contraste, ele chama a atenção de sua mulher ao fato de que a máscara, ainda que outrora dada por Diouana, ainda pertencia à doméstica.

O incidente propõe uma oposição conflitante entre a placidez do marido e a raiva maldosa da esposa. De fato, a exploração de Diouana substitui a possível exploração da própria francesa. Quando Diouana se rebela, a empregada representa uma ameaça real para a esposa, mas não para o marido, como a própria observação de Diouana transparece:

    "Nunca mais ela me dirá: 'Diouana, lave as camisas do patrão'."

Uma vez que não é diretamente ameaçado pela possível rebelião de Diouana, o marido pode ser civilizado e mais humano. Mesmo assim, ele ainda funciona no contexto geral da exploração capitalista. Ao ver a angústia de Diouana, ele imediatamente se oferece para pagá-la. Após sua morte, é ele quem oferece compensação financeira para a mãe em Dakar. Filha e mãe recusam o dinheiro.  Na recusa, elas rejeitam um sistema no qual o trabalho se torna uma mercadoria e dinheiro, um meio de pagar pela morte.

A opressão doméstica de Diouana, expressa e encarnada pela mulher branca, encobre todo um sistema político de exploração do qual não apenas o marido faz parte, mas se estende ao próprio país de Diouana. De fato, o filme sugere que o governo senegalês e a elite negra participam inteiramente na manutenção da opressão capitalista. Relações amistosas entre França e Senegal, advogadas pelo presidente Senghor, são claramente criticadas no filme de Sembene. Em uma festa no apartamento do casal, discutindo suas próprias condições de trabalho no Senegal, eles explicam as vantagens materiais oferecidas pelos acordos governamentais: uma grande parte do seu salário pago na França, moradia garantida, retorno à França duas vezes por ano, etc... Quando os convidados perguntam sobre a segurança, os colonos respondem: "enquanto Senghor estiver lá, as coisas estão seguras".(2)


Ainda que abertamente crítico com relação a tais acordos que institucionalizam e promovem o colonialismo, "La noire de..." também mostra que, às vezes, a opressão está solidamente estabelecida no próprio Terceiro Mundo. De fato, o filme sugere que tanto o grupo intelectual ao qual o namorado de Diouana pertence quanto políticos negros condenam a opressão. Ao mesmo tempo em que se coloca claramente contra a partida de Diouana para a França como empregada doméstica, o namorado senegalês não faz nada para deter sua decisão. Ele abraça valores africanos, visualmente retratados por uma bandeira em seu quarto honrando o advogado da liberdade do Congo, Patrice Lumumba. Ainda assim, ele também demonstra um orgulho ingênuo ao suicídio político dos soldados senegaleses e contribui para a mitificação consumista que Diouana faz da França, fornecendo-lhe a revista Elle.

O filme revela em várias ocasiões a atitude ambígua da elite negra senegalesa. Enquanto Diouana procura por trabalho nas áreas modernas de Dakar, ela passa por três políticos senegaleses bem vestidos que saem da Assembléia Nacional. Ao ver Diouana em um vestido africano, um desses três aconselha os outros a falarem mais baixo, claramente temendo que essa representante "do povo" ("Fui eleito pelo povo") possa ouvir suas maquinações políticas para promover seus próprios interesses.

A elite política não é o único alvo da crítica de Sembene; ele também critica a classe intelectual representada pelos escritores de cartas públicos, professores e estudantes. O primeiro flashback do filme, uma cena em Dakar, mostra uma máscara africana que um garotinho, presumivelmente o irmão de Diouana, usa. O escritor de cartas público senta em uma mesa próxima e ordena ao garoto que tire a máscara africana, uma ordem que sugere a rejeição aos valores africanos em favor do letramento. As várias cenas da escola local, que também chama atenção para a crescente classe letrada do Senegal, revela a presença exclusiva de garotos. De fato, nenhuma mulher senegalesa é vista lendo no filme, enquanto os homens são frequentemente vistos com um livro em suas mãos. Alfabetização se torna, assim, identificada com uma dicotomia entre homem e mulher. O fato de que as mulheres continuam analfabetas tem resultados desastrosos para Diouana. O laço entre mãe e filha, uma firme ligação no filme, é brutalmente rompido quando Diouana vai para a França. O contato entre as duas mulheres requer a escrita, quer dizer, a mediação masculina. Na França, a mulher francesa pode escrever e a mãe de Diouana pede-lhe que escreva da parte de Diouana porque aquela mulher "é também uma mãe".

Todavia, o marido responde e traduz o silêncio de Diouana em frases escritas. Ele escreve que ela está bem. Tal resposta, iniciada e composta inteiramente pelo seu patrão, levanta a suspeita de Diouana: ela não pode ler a carta de sua mãe, sua mãe não pode escrever e Diouana não pode escrever uma resposta. A carta desencadeia o drama final de Diouana enquanto ela percebe que não tem defesas: ela reflete.

            "Se eu pudesse escrever, contaria a eles..."

Sua morte se torna sua maneira de falar e escrever rebeldia, uma rebeldia expressa anteriormente em sua luta pela máscara.

As atitudes que precedem a morte de Diouana na França são repetidas em Dakar. Sua recusa do dinheiro é repetida por sua mãe. Sua recuperação da máscara é repetida pelo garotinho. O primeiro gesto rejeita a exploração econômica ocidental, o segundo reapropria a africana. De modo significante, três senegaleses analfabetos de três diferentes gerações carregam esses atos de protesto.

Entretanto, o tratamento masculino/feminino cai vítima de um preconceito tradicional. O filme traz a mulher se suicidando e o garoto perseguindo o francês: a mulher é a vítima, o garoto é o homem vingador do futuro. O filme usa a figura feminina como uma metáfora para o colonialismo. Sembene expõe alguns aspectos da opressão sexual mas não trata o sexismo em si como uma realidade política que pode ser abordada, combatida e transformada. Ao usar artisticamente a mulher como uma metáfora para resolver alguns conflitos básicos, mesmo assim, o diretor é pego por contradições mal resolvidas. E certas questões fundamentais do feminismo africano, como a poligamia, não são tocadas neste filme. Em "La noire de..." a exploração colonial atravessa a oposição masculino/feminino e é vista operando por trás do disfarce de uma causa política, como as Grandes Guerras, ou de uma promessa de liberdade para participar em uma sociedade de consumo. O filme funciona melhor como um questionamento militante ao neocolonialismo em suas variadas formas.


Notas

1. Conforme afirmação do próprio Sembene sobre compensação financeira da França em uma entrevista com Jeune Afrique (27 January 1973):

    Jeune Afrique: Você recebe uma pensão?
    Sembene: De quem?
    Jeune Afrique: Do exército francês.
    Sembene: Não e eu não quero uma.

2. "Michael Crowder in Senegal: A Study of French Assimilation Policy" escreve:

    “Torna-se cada vez mais irritante para os senegaleses em Dakar, onde o desemprego é crescente, ver europeus fazendo trabalhos que poderiam ser facilmente executados por eles mesmos" (p. 85)

É significante que a Delegação Senegalesa para as Nações Unidas em Nova Iorque tenha sido extremamente desinteressada ou incapaz de dar qualquer informação sobre Sembene. Quando expressei espanto diante do fato de que o oficial senegalês no telefone não havia visto nenhum de seus filmes, ele respondeu prontamente:

            "Não perdi nada não vendo seus filmes."

Por favor, semeie! Semear é muito importante para que outras pessoas tenham acesso ao filme.

João Luis Sol de Carvalho - O Jardim de Outro Homem (2006)

Moçambique/Portugal/França | João Luis Sol de Carvalho | 2006 | Drama | Site Oficial
Inglês/Português | Legenda: Português (partes em inglês)
80 min | XviD 640 x 352 | 1.501 kb/s | AC3 224 kb/s | 29.970 fps 
997 MB
 
Maior produção cinematográfica moçambicana realizada até agora, "O Jardim de outro homem" retrata o cotidiano de uma jovem estudante que enfrenta muitas dificuldades para realizar seu maior sonho: tornar-se médica. Na trama, Sol de Carvalho também denuncia a presença da Aids na sociedade local. Indicado ao 3º Cineport, em 2007, na categoria melhor filme. 





O Jardim de Outro Homem


     É a terceira longa-metragem e a maior produção cinematográfica moçambicana. O filme de ficção «O Jardim de Outro Homem», do realizador Sol de Carvalho, começa a ser rodado este mês em Maputo, anunciou hoje a produtora.
     Segundo um comunicado de imprensa da produtora moçambicana Promarte, a película foi orçada em 850 000 euros.   O enredo baseia-se na história de uma jovem que vive num bairro suburbano de Maputo, que se vê confrontada com a chantagem do professor de Biologia e com a oposição da família, para realizar o sonho de fazer o curso de Medicina. O filme está a ser financiado pela ICAM (Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia) de Portugal, Fond Sud e ADC Sud e Amiens de França, União Europeia, Agência Suíça da Cooperação, Global Initiative dos Estados Unidos da América, Festival de Gutemburgo da Suécia e pelo Conselho Nacional do Combate à Sida de Moçambique. Na mesma nota de imprensa, Sol de Carvalho lamenta a «falta de apoio institucional» do Governo moçambicano, sublinhando tratar-se do filme mais caro da história do cinema do país. «Sendo o filme mais caro da história do cinema moçambicano, é necessário, contudo, salientar que a finalização do filme em película implica custos laboratoriais elevados. Por outro lado, o filme passa-se em vários locais o que elevou significativamente os custos, além da necessidade logística que é bastante grande», sublinhou.     «O Jardim de Outro Homem» é o terceiro filme de ficção do cineasta realizado este ano em Moçambique, que lançou igualmente uma curta-metragem intitulada «A Janela» e «Terra Sonâmbula», este último baseado no romance do escritor moçambicano Mia Couto.     «O Jardim de Outro Homem» é a terceira longa-metragem na história cinematográfica do país, depois da rodagem das películas «O Tempo dos Leopardos» e «O Vento Sopra do Norte», na década de 80.
 

8 Julho 2005

Fonte 



Por favor, semeie! Semear é importante para a manutenção do blog.


Créditos da postagem e da legenda a seogaldino, no MakingOff.

27 de janeiro de 2011

Raymond Rajaonarivelo - Tabataba (1988)


Madagascar/França | Raymond Rajaonarivelo | 1988 | Drama/Ação | IMDB 
Francês/Malgaxe | Legenda: Português/IEspanhol 
79 min | XviD 720 x 432 | 2.770 kb/s | MPEG1/2 L3 111 kb/s | 29.970 fps 
1,25 GB

Tabataba (Rumor)
Tabataba se passa em 1947, no coração de uma vila tradicional malgaxe, em Madagascar. É neste lugar afastado que se fomenta a revolta contra o regime colonial - o germe de uma revolução que, alguns anos mais tarde, levaria à independência de Madagascar. Um "estrangeiro" portador dos princípios do Movimento Democrático da Renovação Malagache (MDRM) trava um debate clandestino com os homens da vila. Que via tomar para a independência? A luta armada? O voto democrático? Transbordando de entusiasmo, o camponês Léhidy se decide pela primeira opção, passando a liderar um grupo de conterrâneos. A história da insurreição e da sua repressão é vista através dos olhos do garoto Solo.

Idrissa Ouedraogo - Tilai (1990)



Burkina Faso/Suíça/UK/França/Alemanha | Idrissa Ouedraogo | 1990 | Drama | IMDB 
More | Legenda: Português/Inglês/Espanhol 
81 min | XviD 720 x 432 | 1.577 kb/s | MPEG1/2 L3 103 kb/s | 29.970 fps 
945 MB
Saga volta a sua aldeia após dois anos de ausência e percebe que muitas coisas mudaram. Nogna, sua noiva, é agora a segunda mulher de seu pai. Mas Saga e Nogma ainda se amam. Os dois começam em segredo um relacionamento que, para a aldeia, é considerado incestuoso, e o cotidiano dos habitantes será transformado.

26 de janeiro de 2011

Mark Dornford-May - Son of Man (2006)

África do Sul | Mark Dornford-May | 2006 | Drama | IMDB 
Inglês/Xhosa | Legenda: Português 
86 min | XviD 592 x 336 | 993 kb/s | MPEG1/2 L3 115 kb/s | 25.000 fps 
702,4 MB
No estado de Judéia, sul da África, a violência, a pobreza e o sectarismo são endêmicos. A vizinha Aliança invadiu sob o pretexto de restaurar a paz. Batalhas sangrentas nas ruas acompanham a incursão da ditadura em seu satélite. Promessas de uma transição para o regime democrático está marcado por execuções sumárias, massacres brutais. Enquanto a guerra civil atinge um novo patamar, uma criança divina nasce de um casal humilde. Quando ele cresce e testemunha a desumanidade do mundo em que vive, seus guardiães angélicos lhe oferecem uma fuga para o céu. Ele se recusa. Este é seu mundo e ele deve tentar salvá-lo do trabalho de homens maus e da escuridão que trabalham com eles. Como adulto, ele viaja para a capital, reunindo seguidores ao longo do caminho das facções armadas e dos rebeldes em toda a terra. Ele exige que seus seguidores renunciem às armas e confrontem os seus governantes corruptos, com uma visão de protesto pacifista e de solidariedade. Inevitavelmente, ele atrai a atenção dos líderes tribais da Judéia, que fecharam um acordo de partilha de poder com o arredio governador Pilatos. O Filho do Homem deve ser derrubado e destruído. Este filme é um remake poderoso da vida de Cristo estabeleceu na África do Sul contemporânea.

 






"Um dos filmes mais extraordinários e poderosos em Sundance" - Roger Ebert

"Filho do Homem não poderia ser melhorado" - Variety

"Mais comovente do que "A Última Tentação de Cristo", e mais elaborado do que a paixão de Mel Gibson" - Seattle Weekly



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Créditos da postagem e legenda a seogaldino, no MakingOff.