28 de maio de 2011

Livro: Moçambicanos perante o cinema e o audiovisual

 
A seguir, um trecho do livro do historiador e antropólogo Guido Convents. Para ler sobre o lançamento do livro na feira do Livro de Maputo 2011 e o autor, clique aqui.
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Imagens & Realidade
Moçambicanos perante o cinema e o audiovisual
Uma história política-cultural do Moçambique colonial até a República de Moçambique (1896-2010)

Introdução

“Uma cultura cinematográfica que existe há mais de um século em Moçambique? Está a brincar comigo! Ainda hoje, os moçambicanos não sabem o que quer dizer ‘cinema” - reacção de um jornalista português, em 2004, numa conversa, em Setúbal, durante o Festróia.

O resultado deste conversa é que Mário-Ventura Henriques (1936-2006), o director do Festróia, decide organizar, no ano seguinte, uma conferência sobre o cinema em Moçambique, para a qual convida os jovens cineastas moçambicanos Horácio Comé e Karl de Sousa. Nesta conferência, os convidados esboçam o estado do cinema moçambicano desde o incêndio no Instituto Nacional de Cinema, em Maputo, em 1991. Falam da chegada e da implementação do sistema de registo em vídeo: a película é abandonada devido aos custos e à dificuldade de todo o processo de filmagem e de pós-produção mas também devido ao aparecimento da televisão acaba por absorver muitos dos cineastas e técnicos de Moçambique. Indicam que subsistem duas associações, em 2005, uma das quais a CinemArena, projecto italiano, que suporta projectos de comunidades regionais.

Os moçambicanos mencionam a fundação em 2002 da Associação Moçambicana de Cineastas (Amocine), as suas tentativas de defender a profissão e a luta para melhorar o financiamento das produções cinematográficas moçambicanas. Horacio Comé nota ainda que, apesar dos problemas financeiros, produtoras em Moçambique conseguem fazer filmes interessantes, sobretudo documentais, com uma ressonância internacional.

Para Karl de Sousa (em 2005) uma das tragédias do cinema moçambicano é a ausência de salas de cinema “normais” para exibir os filmes moçambicanos: a empresa portuguesa Lusomundo que controla três salas, duas em Maputo e uma na Beira, tem em cartaz só filmes americanos e os exibidores indianos, que detêm dez salas, programam exclusivamente produções indianas. Explica que filmes moçambicanos são projectados no Centro Cultural Franco-Moçambicano mas com audiência confinada a uma elite.

Karl de Sousa conta como o carro de cinema móvel da CinemArena leva o cinema ao interior do país. Comé explica que, depois da morte de Samora Machel, o governo privatizou as salas, retirando aos filmes moçambicanos o espaço de exibição e os fundos para a produção que até essa altura se obtiam a partir de uma percentagem sobre as receitas da exibição. Os participantes na conferência foram surpreendidos ao ouvir que os canais moçambicanos de televisão geralmente não pagam os direitos dos filmes moçambicanos independentes emitidos e que só em casos especiais lhes atribuem somas irrisórias. De Sousa discorre sobre as negociações luso-moçambicanas, havidas em 2003-2004, para a criação de uma Cinemateca em Moçambique com o objectivo primeiro de preservar os filmes moçambicanos produzidos desde a Independência e também os filmes da época colonial realizados na então colónia. Constata que existem cada vez mais co-produções entre Portugal e Moçambique, relevando a sua importância para os técnicos, actores e produtoras moçambicanos. Neste contexto, refere o filme O Gotejar de Luz, um projecto, na altura, a ser realizado por ele mesmo mas que acabou por ser dirigido pelo cineasta e produtor português Fernando Vendrell.

Mário-Ventura Henriques, que também programara o documentário Kuxa Kanema, de Margarida Cardoso, declara que, no futuro, o Festróia continuará a apoiar o cinema moçambicano. Após este encontro, em Junho 2005, Mário-Ventura Henriques declara-se um pouco decepcionado e salienta que só três representantes da imprensa lusa haviam feito a cobertura do evento, em contraste com a presença de oito jornalistas estrangeiros acreditados junto do Festróia. Como explicar tal desinteresse dos portugueses pelo cinema em Moçambique, escassos trinta anos passados sobre a época colonial? E formula uma resposta possível: mais do que ignorância, ou indiferença, talvez se esteja na presença de um muito restritivo conceito de “cultura cinematográfica”.

O conceito de “cultura cinematográfica” é mais amplo do que a história da produção nacional de filmes. Implica uma infinidade de aspectos que se entrelaçam e exprimem a complexidade da sociedade: da economia (produção, distribuição, exibição, importação, exportação, publicidade, turismo, moda, etc.), da tecnologia (película, digitalização, vídeo, câmaras, estúdios de montagem, projectores, sistemas de sons, lentes, etc.), da política nacional e internacional (propaganda, censura, resistência -contracultura, identidade, modernidade, emancipação, liberalização, impostos, subvenções, etc.), da população (colonizadores portugueses, assimilados, africanos, indianos, mulheres, crianças, técnicos, etc), da legislação (censura, regulamentos de segurança, protecção das crianças, etc.), até do espaço urbano (salas de cinema, arquitectura, etc.). Os elementos evidentes que fazem parte da cultura cinematográfica são também as imagens (o que se vê no ecrã), histórias, sons, cores, línguas, músicas, estrelatos, técnicos, produtoras, realizadores, publicações, críticas, debates, etc.). A cultura cinematográfica abarca todas aquelas dimensões e, nesse particular, Moçambique não é excepção.

Não pretendemos ser exaustivos em relação a todos os aspectos que fazem parte da cultura cinematográfica em Moçambique. Cada tema merecia um ou mais estudos. Esta publicação quer fazer um primeiro esboço do que pode ser entendido como cultura cinematográfica em Moçambique, levantando só uma ponta do véu. É sua pretensão fornecer os elementos que possam explicar como essa cultura fazia e faz parte da história global do país e do cinema ocidental, latino-americano, asiático e africano.

Queremos, também, indicar que a maioria das fontes necessárias para escrever e, através delas, nos inteirarmos das várias dimensões dessa cultura cinematográfica, se encontram disponíveis nos arquivos e bibliotecas moçambicanos. Trata-se de uma grande quantidade de documentos, o que significa que não foi sempre fácil escolher entre os milhares de artigos e outras publicações dedicadas ao assunto. Pensamos ter feito uso das fontes relevantes para tornar claro como o cinema faz parte do património cultural de Moçambique. Consultámos também arquivos e bibliotecas estrangeiros, em Portugal e na Bélgica, que conservam colecções de documentos interessantes da época colonial. A bibliografia desta publicação contém centenas de referências, mas estamos certos de que haverá muitas omissões que podem completar e enriquecer o conhecimento da cultura cinematográfica em Moçambique. É evidente que existem também outras fontes para além das escritas. O estudo e a análise das imagens produzidas em Moçambique enriquecerá, indubitavelmente, o conhecimento da cultura cinematográfica no país. Além disso, existem em Moçambique milhares de pessoas que podem contribuir para um melhor conhecimento da significação do “cinema” para a cultura com as suas experiências como produtores, realizadores, técnicos, actores, espectadores ou críticos.

Tendo em conta a investigação feita e o resultado aqui aferido, decidimos dividir este livro em três partes, nas quais os mesmos temas são examinados: a exibição de filmes e as filmagens no país. A linha narrativa é cronológica, construída com os elementos marcantes da história geral do cinema e do audiovisual e da história política de Moçambique durante o século XX, com inevitáveis referências à política colonial portuguesa. Neste contexto, um lugar particular é atribuído às ‘personagens marcantes’, tais como produtores, realizadores e exibidores.

A primeira parte é dedicada à época colonial: da chegada do cinema em 1896 ao país vizinho, a África do Sul, até à utilização das imagens cinematográficas pela Frelimo e o exército colonial português (1974). Não descuramos, evidentemente, as primeiras apresentações e as salas de cinema nos centros urbanos. Investigamos a reacção das autoridades coloniais perante a programação de uma multiplicidade de filmes europeus e americanos que não são sempre compatíveis com o seu “mundo”. Como situar a presença de filmes dos outros continentes, como as produções latino-americanas e asiáticas (chineses, indianas e paquistaneses)? Como respondeu o Estado Novo a essas influências culturais? Dedicamos um capítulo ao cinema não-comercial, porque ainda hoje (2010) o mundo do cinema sublinha a importância dos cine-clubes como lugar de resistência contra a política colonial e como a base do cinema do Moçambique independente. Além disso, prestamos aqui atenção às actividades da Igreja Católica no âmbito do cinema.

Nesta primeira parte aborda-se uma das questões recorrentes na historiografia recente sobre a presença do cinema em África. Examina-se como e quando os povos Africanos entraram em contacto com o cinema. Até muito recentemente, pensava-se que antes das suas independências, os povos africanos não teriam acedido à fruição da Sétima Arte e que, se isso acontecera, tal acesso merecera o crivo especial da administração colonial. Contudo, a partir dos anos cinquenta, os “indígenas” e os indianos têm as suas próprias salas com uma programação de filmes asiáticos e europeus ‘especiais’, como os westerns e karaté, muitas vezes desprezada ou ignorada pelos intelectuais. Mas como explicar a popularidade destas produções que, aparentemente, não podem ser comparadas com as do neo-realismo italiano, por exemplo? Também se investiga uma das afirmações recorrentes de que antes da Independência não “havia uma produção cinematográfica local significativa”. A indicação “significativa” refere-se, de facto, a uma produção ao “serviço” do povo moçambicano, dado não se considerarem os filmes comerciais feitos no âmbito colonial. Parece-nos uma visão restritiva. Pela nossa parte, consideramos também estas imagens e as curtas-metragens dos cine-clubes, por exemplo, como componentes integrais da cultura cinematográfica de Moçambique.

Para pesquisar o mundo do cinema durante a época colonial, consultámos os arquivos da administração colonial em Maputo e em Lisboa, a imprensa colonial em geral e, sobretudo, as publicações periódicas destinadas aos africanos como O Brado Africano. De facto, este jornal é uma das fontes que serve como uma espécie de guia e de perspectiva para abordar a cultura cinematográfica em Moçambique. O citado semanário foi o órgão do Grémio Africano de Lourenço Marques que defendia os “naturais do Ultramar”. O jornal existiu de 1918 até 1974. Editou-se em português e em ronga. Reuniu negros, mestiços, às vezes indianos e mesmo alguns brancos, com o único objectivo de falar sobre e para Moçambique.

A segunda parte ocupa-se dos primeiros quinze anos da Independência durante os quais o cinema é integrado na política da Frelimo, que dirige então o país. Começamos por observar que o cinema ocupa um lugar privilegiado na política do regime marxista-leninista, quer na exibição quer na produção. Queremos dar uma ideia do impacto da revolução sobre a programação de filmes na cidade e no campo, como o Estado procura uma política cinematográfica adequada para construir um ‘novo mundo’ e tentamos avaliar as contribuições da Ruy Guerra, Jean Rouch e Jean Luc Godard para essa política. Como se desenvolveu a produção durante os anos 1975-1991? Que relações entre teoria e prática? Estaremos só a falar de filmes produzidos pelo Estado ou será necessário observar outras nuances? Tencionamos, por outro lado, dar uma atenção especial à presença de realizadores e técnicos latino-americanos no país.

A terceira parte do livro é consagrada às últimas duas décadas, marcadas pela liberalização do mundo audiovisual e pela chegada da nova tecnologia digital, eventos que têm grandes consequências para o mundo do ‘cinema e do audiovisual’. Embora a televisão privada e pública ganhem uma importância sempre maior, não vamos debruçarmo-nos sobre esse desenvolvimento. Queremos apresentar as novas estruturas (produtoras, associações de cinema e de vídeo arte, etc;) de produção de filmes mas também da exibição, onde cabe o cinema móvel, do festival Dockanema e do regresso do conceito de cineclubismo. A informação da segunda e terceira parte vem substancialmente da imprensa moçambicana, sobretudo da revista Tempo e do jornal Noticias, ambos publicados em Maputo. Um grande número de testemunhas do mundo do cinema moçambicano forneceu documentos e informações suplementares. Apraz-nos afirmar que os filmes produzidos e realizados por estrangeiros e distribuídos principalmente fora de Moçambique, fazem, de uma forma ou de outra, parte do património audiovisual do país. Estas imagens podem ser consideradas como um espelho que revela diferentes percepções do país, dos seus habitantes e das suas realidades.

Finalmente, o título do livro, Imagens e Realidade, é o resultado desta pesquisa. O desejo de ver e de encontrar a realidade nos filmes, parece ser um elemento recorrente na cultura cinematográfica em Moçambique.

2 comentários:

Oubí Inaê Kibuko (Cine Afro Sembene) disse...

Postamos esta matéria no blog Cine Afro Sembene e eu gostaria de conhecer este livro pra pesquisa, estudo, referencia. Podem indicar alguém de Moçambique para conseguir e enviar um exemplar para mim via Correios a cobrar? No aguardo, Oubigrato pela atenção. Oubí Inaê Kibuko

Blog: Cine Afro Sembene
Postagem: Um livro pioneiro sobre o cinema em e de Moçambique
Link: http://cineafrosembene.blogspot.com/2011/09/um-livro-pioneiro-sobre-o-cinema-em-e.html

Alberto disse...

onde comprar este livro?
Alberto