22 de fevereiro de 2011

O cinema e as utopias da nação

Trecho do artigo "A recepção dos filmes africanos no Brasil", de Mahomed Bamba (Faculdade de Tecnologia e Ciência de Salvador/BA), originalmente publicado na revista Estudos de Cinema Socine.


O CINEMA E AS UTOPIAS DA NAÇÃO

Em seu livro "La projection nationale: cinéma et nation", J-M. Fredon (1998) se dedica não só à análise das formas como as grandes nações se enfrentam pelo controle da hegemonia no campo cinematográfico, bem como traz uma interessante leitura dos procedimentos de "ficcionalização" das fantasias nacionais ao longo da história do cinema. Segundo o autor, o cinema, cuja invenção coincide, nesse fim do século 19 com a instalação da "forma nação" como modelo político dominante, foi o instrumento e o meio de identificação ou de projeção (imaginaria ou simbólica) que os Estados encontraram e utilizaram, mais ou menos deliberadamente, para construir e fixar o elemento nacional.

Antes de ser visto como um difusor de diversidade cultural, o cinema serve, entre outros propósitos, para consolidar a imagem que cada nação tem de si mesmo. O que leva J.-M. Frodon a postular que a nação e o cinema resultam de um mesmo movimento, de uma mesma dinâmica, isto é, a "projeção", no sentido técnico e simbólico, e que corresponde ao gesto de oferecer a uma comunidade uma imagem e um relato maiores do que aquilo que os gerou.

É desse movimento que surgem os filmes coloniais franceses. Questionar, depois de um século, o cinema colonial, é, como sublinha o historiador Pascal Blanchard (2002), tocar a questão da constituição da "identidade utópica de uma nação que projeta as suas próprias fantasias sobre a tela". O cinema colonial francês é portador de uma rica iconografia reveladora da "superioridade da civilização ocidental sobre as civilizações exóticas". São filmes feitos diretamente das colônias e compõem hoje um corpus que informa sobre a sociedade francesa do século passado e ajuda a entender a elaboração de um imaginário coletivo e os dispositivos simbólicos pelos quais essa sociedade construiu o seu olhar sobre um outro mundo.

Pascal Blanchard, por outro lado, destaca a continuidade existente entre o cinema colonial e a pintura, a literatura e a fotografia da época colonial. Os filmes coloniais, como era de se esperar, vão beber na mesma fonte dos estereótipos e representações imaginárias comuns da época. Cada filme colonial acentua os benefícios da colonização. Mas, ao projetarem as fantasias de uma França colonialista para outros franceses, os filmes coloniais se tornam também um exercício de representação do outro em forma de espelho deformador. As imagens estereotipadas concernem, em primeiro lugar, aos negros. Ao contrário do africano do norte e dos autóctones da Indochina, o negro africano é mostrado como alguém de cômico, alegre, satisfeitos da sua condição.

Esse movimento de convergência entre o cinema e a nação vai logicamente desembocar na consolidação das identidades nacionais, mas também na constituição das cinematografias nacionais tais como as conhecemos hoje. As origens remotas do cinema africano são fortemente imbricadas com as vontades de superação da filmografia colonial francesa.

O CINEMA NA AFRICA 
OU A RE-APROPRIAÇÃO DO GESTO DE AUTO-REPRESENTAÇÃO

As cinematografias africanas são contemporâneas dos períodos das independências dos países africanos, o que faz delas as mais jovens cinematografias do mundo. Na África o cinema se construiu como uma luta pelo direito a imagem, isto é, uma forma de autodeterminação pela imagem. A partir dos anos 60, a maioria dos países africanos de língua francesa acaba de aceder à soberania nacional; a produção cinematográfica é ainda incipiente. No entanto, nota-se, de forma embrionária, a imbricação do cinema com o destino político cultural das jovens nações africanas. O compromisso quase ético da primeira geração de cineastas africanos como o
projeto político das nações africanas determinou para sempre o rumo e os objetivos das cinematografias nascentes.

Os primeiros filmes realizados pela primeira geração dos cineastas africanos podem ser lidos e interpretados como uma reação contra a iconografia acumulada durante o período colonial. A realização do primeiro curta, "Afrique sur-Seine", por um grupo de cineastas negros, representou não somente um alargamento da experiência cinematográfica a outros povos (no plano da produção de imagens), bem como simbolizou a era de novas contribuições, no plano estético, na história do cinema. 
As primeiras e tímidas vontades dos jovens governos africanos de se dotarem de infra-estruturas cinematográficas foram também maneiras de quebrar a dominação colonial pela imagem. Mas, a difícil consolidação dos estados modernos na África e a falta total do conceito de nação fazem com que a aplicação da noção de cinematografia nacional aos filmes africanos continue ainda problemática. As primeiras vontades políticas no setor cinematográfico nas primeiras horas das independências foram de curta duração. Há meio século, a história do cinema africano continua sendo uma história de individualidades que realizam seus filmes com recursos escassos. Em virtude de seu contexto de produção marcado pelo subdesenvolvimento, o cinema africano se destaca na história geral do cinema por vários traços idiossincráticos que são de ordem espacial e temática. Estes traços funcionam, pelas comodidades teóricas, como um denominador comum entre os trabalhos dos diversos cineastas espalhados pelo continente. André Gardies (1989), por exemplo, relaciona uma das singularidades do cinema negro-africano à maneira como o espaço é figurado nos filmes africanos. Para Gardies, as modalidades de representação do espaço africano na tela acabam por simbolizar todo um movimento de emancipação e de re-apropriação territorial decorrente das independências. Por outro lado os modos de figuração do espaço africano denunciam a própria dificuldade que há de apreender as escassas produções cinematografias africanas a partir do parâmetro de nação:

"Estado, nação, pátria são conceitos não tão evidentes sobre este continente. O espaço africano ostenta ainda grandes zonas de turbulências. Precisamente, esta busca, esta reconquista, esta lenta e difícil re-apropriação se lêem, de certo modo, através da produção cinematográfica (GARDIES, 1989, p. 9)."

Os temas políticos e sociais abordados nos filmes africanos de hoje e de ontem estão aí também para lembrar que os cineastas africanos continuam engajados numa estética do cinema de urgência. Com o fim da colonização, os novos problemas trazidos pelas independências passam a ser tematizados nos filmes africanos, a aventura cinematográfica no continente africano toma outros rumos e os cineastas se engajam
em novos combates. Porém, de modo geral, podemos dizer que os filmes africanos tiram seus temas de duas fontes inesgotáveis: os mitos africanos e a realidade da África moderna. Os trabalhos dos cineastas africanos da primeira e da segunda geração se inserem numa linha de denúncia social e política. A luta contra a corrupção, a crítica a costumes retrógrados e a falta de democracia, são exemplos de temas recorrentes nafilmografia africana. Inclusive quando a rica mitologia africana² é revisitada por alguns cineastas da nova geração, é sempre em contraposição à modernidade mal consumada em todos os países africanos. Esta volta às fontes ancestrais e à "África pura" constitui, de certa, um prolongamento do projeto de auto-afirmação cultural já presente na literatura e na poesia negro-africanos.
¹"Afrique-sur-Seine", curta metragem de 21 minutos, co-realizado em 1955 por dois senegaleses
(Paulin Vieyra e Mamadou Sarr), é considerado pelos historiadores como o filme que marca o
nascimento do cinema africano. O filme aborda alguns aspectos da vida dos africanos em Paris.

²Como acontece no filme Yeelen de Souleymane Cissé (Mali).

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