A revista Filmologia trouxe, em sua edição #9, um especial sobre cinema negro com vários textos dedicados ao cineasta Djbril Diop Mambety. Confira clicando AQUI.
Edição #09
Editorial
O sonho africano
“Eu
sou negro. Estou em total fusão com o mundo, numa afinidade simpática
com a Terra, perdendo meu ID no coração dos cosmos – e o homem branco,
por mais inteligente que ele possa ser, é incapaz de entender Louis
Armstrong ou as músicas do Congo. Eu sou negro, não por causa de uma
maldição, mas porque minha pele foi capaz de capturar toda a eflúvia
cósmica. Sou verdadeiramente uma gota do Sol sobre à Terra” – Frantz Fanon
O
“cinema negro” (não no sentido étnico da coisa, mas na modalidade do
alcance da visão que terá de ir até a cratera mais profunda dos arquivos
cinéfilos para encontrá-lo) sempre sofreu uma espécie de expiação
temporal dos círculos que deveriam abraçá-lo. Foi “martirizado” pela
consciência da cinefilia europeia e norte-americana (que “contaminou” a
paixão pelo cinema por todo o globo), deixando assim um mosaico
fortemente ressentido de esferas negras, de cineastas negros (no duplo
sentido que a definição legitima: o negro da pele e o negro do
desconhecido), de histórias próprias e intransponíveis a qualquer visão
minimizadora, pedante ou fascistoide.
Djibril
Diop Mambéty tal qual seu compatriota Ousmane Sembène, foi a certidão
de nascença de algo maior do que qualquer sistematização global na busca
pelos “cineastas universais”. Ambos dominaram a produção
cinematográfica de Senegal a partir da segunda metade do século passado.
Enquanto Mambéty foi impregnado de sonhos e de uma necessidade de
criação permanente ao mesmo tempo que era tomado frequentemente como
exemplo de uma marginalidade meticulosamente cultivada, Sembène foi
escritor, sindicalista, militante político e ex-combatente. A diferença
entre as duas cinematografias se dá pelo sonho de uma nova esperança
anti-colonialista (Mambéty) e o sangue da fúria anti-colonialista
(Sembène). Para ambos, a autêntica aprendizagem vital estava escondida
na miscelânea da vida cotidiana, ao lado de pessoas de países e
condições diferentes.
Em Contras’ City
(1969) Mambéty já perfilava os acentos que o perseguiriam até o fim de
seus dias: uma atração pelos marginalizados, uma tendência a recusar o
compromisso artístico condizente à elite e, sobretudo, uma generosidade e
um sentido de rebelião desprovidos de qualquer tabu. Para ele, o teatro
e o cinema se complementavam: o primeiro é a ante-sala do segundo, o
lugar onde se impõe os gestos, as palavras, os decorados, as cores. Para
Mambéty, de fato, um povo digno e livre é soberano. E é inútil
“mostrar” que os povos africanos são infantis ou débeis. Por isso que em
filmes como Badou Boy (1970) ou Touki Bouki
(1973) a explosão do corpo é a síntese maior da vida: há a velocidade
dos corpos, dos aparatos, do coração que palpita na proporção em que o
sonho africano se mantêm vivo – e esse sonho, sabe Mambéty, não é um
sonho como os sonhos dos homens e mulheres europeus: o sonho aqui é o
sonho de correr, de pular, de dançar, de fugir, de alcançar uma
experiência além-vida, de mitigar a opressão diária da miséria, de falar.
À
frente da fome e do obscurantismo, à frente da miséria e da consciência
embrionária, Mambéty tem toda essa noção, transforma-a em utilidade
cinematográfica, refaz o homem a partir do degradante, escurece-o ao
máximo para depois jogá-lo à luz. O “cinema negro” (agora sim, na
conotação étnica), de fato, merece esse redescobrir, porque
a história africana não é uma história de vergonha, mas uma história de
luta, dum eterno embate frente à “civilização branca” – porque o negro
jamais foi tão negro quanto a partir do instante em que esteve sob o
domínio do branco, e resolveu dar testemunho de cultura, percebendo que a
história lhe impõe um terreno determinado, que a história lhe indica um
caminho preciso e que lhe cumpre manifestar uma cultura negra, uma
cultura própria, local e então, universal. O cinema de Mambéty é,
portanto, um dos mais fortes sintomas dessa cultura africana universal,
porque acima de tudo, seus filmes são sobre o compartilhar de
experiências próprias num local ainda visto com olhos tão maldosos pelo
mundo.
Dito isso, o Filmologia
na reestruturação que lhe é indispensável (percebam os “volumes” e
“números” substituindo as “edições” nas capas do site, imposições vindas
do ISSN que estamos providenciando), parece começar, outra vez (!),
mais uma nova fase. A equipe agora se resume a quatro membros (Pedro
Neves e André Antônio cumpriram sua parte e seguiram seus rumos) e,
eventualmente, tentaremos convidar algumas pessoas para compor as
edições conosco. Aqui, nosso convidado é Heron Formiga, mestre em
Comunicação pela UFPE e doutorando em Comunicação pela UFMG. Esperamos,
com isso, melhorar o ritmo na feitura das edições e de nossas demais
atualizações (críticas, artigos, filme em foco…) e nos fazermos mais
presentes (não demasiadamente
presentes, claro) frente aos filmes. Ao leitor, desejamos que essas
mudanças, das quais essa edição provavelmente marca o início “oficial”,
sejam satisfatórias e funcionais. E, claro, lugar-comum sempre
inescapável, desejamos a todos uma boa leitura.
Ricardo Lessa Filho
Fevereiro / Março / Abril de 2012
Edição 09 (Vol. 3, N. 1)
Um comentário:
Achei incrível ler sobre o cinema negro e um pouco desse cineasta Djbril Diop Mambety. Sou cinéfalo, mas confesso que sobre cinema africano sou um zero a esquerda. Achei esse blog maravilhoso e está aqui entre os favoritos. Tentarei sempre acompanhar e aumentar esse conhecimento que até então era desconhecido. Ótimo texto e um abraço.
Renan Matos Magalhães
http://thomaslumiere.blogspot.com.br/
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