25 de abril de 2011

Henry Barakat - Fi Baitina Rajul (1961)


Egito | Henry Barakat | 1961 | Drama | IMDB
 
Árabe | Legenda: Português/Inglês/Francês
  2h 33min | XivD
624x464 | MPEG 1/2 L3 128 kb/s | 25.000 fps 
1,78 GB

Fi Baitina Rajul / Um estranho em minha casa 
Um drama político sobre a resistência à dominação britânica do Egito, que terminou com o exílio do rei-títere Farouk em 1954 e a ascenção ao poder de Gamal Abdel Nasser. O filme começa com o assassinato de Primeiro-Ministro pelo jovem revolucionário Ahmed Hamdi. Em sua fuga da polícia, Hamdi refugia-se na casa de uma família apolítica de classe-média, que acaba assumindo o risco de esconder um perigoso fugitivo da justiça. Baseado em uma novela de Ihsan Abdel Qoddous, o filme é um retrato fiel desse turbulento período, no início da década de 1950.







Crítica: Um estranho em minha casa
O portão de uma casa habitada por uma família, imagem que indica a entrada e o início de um caminho que tem como seu ponto de chegada a ambiência serena e afetuosa de um lar, é o primeiro signo que nos é apresentado por Um Estranho em Minha Casa. Em cima dessa imagem/signo vemos os créditos iniciais do filme, que após nos apresentar o conjunto de atores e técnicos envolvidos em sua realização, antecede o começo da narrativa com uma cartela institucional. Nela, os produtores agradecem a instituições (à polícia, às forças armadas, à prefeitura, aos hospitais) pela colaboração dada ao filme e afirmam que por intermédio desta foi possível concretizar uma obra profundamente “realista e brilhante”.

Percebemos aí, logo de cara, a utilização estratégica do adjetivo “realista” como indicador de um critério de qualidade e renovação. A indústria cinematográfica egípcia (a única do mundo árabe, apta por sua produtividade, a receber essa classificação) adquiriu significativa força a partir da década de 30 através do papel exercido por estúdios mantidos pela iniciativa privada, como é o caso dos estúdios MISR. Essa produção é considerada pela maioria dos historiadores/pesquisadores que se debruçaram no estudo da cinematografia árabe como absolutamente mimética à Hollywood. Os poderosos magnatas, empresários e industriais egípcios, ávidos pela diversificação de seus negócios, ao elegerem a atividade cinematográfica teriam enxergado na repetição das velhas fórmulas a chave para o lucro fácil e garantido. Tal visão do cinema egípcio pré-1952 como exclusivamente escapista, comercial ao extremo, pouco “artístico” e afastado da realidade social do país, foi reforçada quando em 1947 foi promulgado um rígido código de censura (claramente inspirado no modelo norte-americano) que vetava, sem pudor, a representação das classes populares. A periferia e os bairros pobres não deveriam existir como cenários, os camponeses e o crescente proletariado urbano eram personagens do mundo “real” que não poderiam de maneira nenhuma penetrar no Mundo do Cinema. Realidade e Cinema eram elementos conscientemente trabalhados como esferas opostas, logo o diálogo entre elas estava impossibilitado.

Houveram exemplares isolados de um cinema com fortes inspirações “realistas”: Al-azima/ A Determinação (Kamal Selim, 1939) e As-suq alasuad/O Mercado Negro (Kamal al-Telemsani, 1945), porém essa tendência, consideravelmente ampliada pela difusão dos principais filmes neo-realistas italianos, só ganharia maior relevo após a revolução encabeçada por Gamel Abdel Nasser em 1952. Os principais nomes da etapa “realista” desse renovado cinema egípcio seriam Yussef Chahine, Salah Abu Seyf e Tawfiq Salah. Porém, mesmo esses três diretores que, com a exceção de Tawquif Salah, já tinham realizado filmes nos anos 40, teriam que injetar o desejado realismo com uma certa dose de parcimônia. O aspecto realista desses filmes pós-revolução nasserista acabavam sendo diluídos em um caldo melodramático predominante. O melodrama como gênero de imbatível apelo popular e o uso de um sólido star system (encabeçado sobretudo pelo par romântico Omar Sharif/ Faten Hamana) permaneciam como as principais ferramentas utilizadas para se chegar ao grande público. Portanto, esse frágil realismo se ancorava muitas vezes apenas na solução fotográfica de se usar luz natural, mesclada com o olhar voltado para os ambientes/personagens populares. A narrativa, a dramaturgia, os diálogos e as soluções de mise-en- scène ainda eram bastante devedoras do cinema clássico. O realismo seria então aqui efetivado como um adorno, mais como um floreio diferenciador e menos como uma essência diferencial, manuseada acima de tudo para separar e delimitar, um pretenso novo cinema que estaria por vir, daquele velho cinema que já foi.

Essa dicotomia estabelecida entre um “velho cinema” versus um “novo cinema” é onipresente em Um Estranho em Minha Casa. O que esse filme teria de “clássico” e o que ele emanaria de “novo”? Em uma primeira aproximação percebemos que ele opera tímidas tentativas inovadoras (sobretudo no contexto egípcio) estando mergulhado até o pescoço em uma estrutura clássica. O que o sustenta e o que o mantêm de pé é a narrativa clássica, ela é o seu ar, é ela que oxigena o seu cérebro. Porém, simultaneamente a essa constatação, sentimos que há ali, algumas vezes escondido e em outras não, um desejo de inovação. No meio daquelas fortes e constantes tinturas morais, utilizadas de maneira extremamente didáticas – a defesa incondicional da família como instituição sagrada e da educação como o bem maior a ser cultivado pelo Homem – notamos um incubado movimento de ir além. Porém, esse ir além, se chega a existir como um anseio, acaba sendo seguidamente freado pelo todo que o engole.

Ibrahim Hamdy (Omar Sharif) é um herói clássico até o último fio de cabelo. Em sua sólida e metálica fortaleza moral não há aberturas para ambigüidades, dúvidas existenciais ou conflitos psicológicos. O seu ideal é reto e direcionado para um ponto minuciosamente focalizado. A sua motivação e a razão de sua existência é uma só: salvar o Mundo e, por conseguinte, carregar todas as suas injustiças nas costas. Cabe a ele ser o responsável pelas dores do Mundo e aqui Mundo é lido como país, logo a libertação do Egito e a aniquilação das forças imperialistas britânicas estão exclusivamente em suas mãos. Newal, a jovem que por ele se apaixona, vê na imagem de seu amado a luz e a força indestrutível de um verdadeiro Deus. Força que será capaz de remover e ultrapassar todos os obstáculos para promover o bem. Quando o seu irmão Mohel e o primo Abdel Hamid foram presos, ela realmente acreditava que no exato momento em que Ibrahim se interasse do fato, ele os libertaria em uma fração de segundo. De fato, se lembrarmos da extrema facilidade com que o protagonista entra no palácio de governo, mata o 1º Ministro e foge da prisão dias depois, tendemos a concordar com Newal a respeito da invulnerabilidade de nosso herói. Tamanho aspecto invencível é explicado pela força de seus objetivos. Quando Abdel Hamid pergunta com evidente perplexidade sobre a razão que o levou a assassinar o governante, sacrificando assim o seu futuro, Ibrahim responde: “Fé, se tiver fé em seus princípios, jamais terá dúvidas”.

Em um outro momento, o personagem afirma: “servir o meu país não foi uma questão pessoal”. Esse impetuoso sentimento de doação, de se sacrificar pela coletividade ou pela entidade que ele compreende como “povo”, está intimamente entrelaçado com a atmosfera religiosa/messiânica onipresente no transcurso da narrativa. Fé e nacionalismo são aqui substâncias indissociáveis. Ser patriota é tão natural quanto acreditar em Deus. Ser patriota transcende o fato de ser ou não politizado. Quando a “sagrada família” se encontrava no dilema entre dar ou negar abrigo a Ibrahim, a apolítica Newal diz que sendo egípcios eles teriam a obrigação de acolhê-lo. A igualmente alienada Samia, afirma que “até mesmo um ateu” teria dado abrigo ao fugitivo. Convencido por esse argumento, de que é necessário socorrer o próximo quando este se encontra em apuros, o Pai volta atrás e o recebe em seu lar. O pai alega que seu ato não o faz se envolver com política e que o mesmo se funda unicamente no sentimento religioso de ajudar o seu semelhante. Porém, todos sabiam que Ibrahim não era um assassino comum e tinham a ciência do que o levou a matar. O grande temor pela política sentido e difundido pelo patriarca se baseia na possibilidade que ela apresenta em levar seus entes queridos para caminhos perigosos. O Pai aconselha Mohel a se dedicar exclusivamente em seus estudos e a nunca se envolver com os “amigos de Ibrahim”. A política e os indivíduos que estavam próximos dela eram sem dúvida más companhias. O discurso de que é importante ser fiel à pátria e de que a política é um negócio arriscado e para poucos, mais do que emanar das ações/falas dos personagens, acaba adquirindo maior relevância através do uso das tais estratégicas clássicas priorizadas pelo filme. Ao fazer uso do herói idealizado, Um Estranho em Minha Casa corrobora a idéia de que a sua atitude revolucionária é uma exceção e não uma regra. Aqueles manifestantes que aparecem no inicio da narrativa formam uma massa e um todo homogêneo. Não existem outros Ibrahims no meio daquela multidão que se rebela. Aquela massa não é composta por vários Ibrahims, e sim por indivíduos cujos rostos são apagados para que possamos enxergar com extrema nitidez apenas o rosto do nosso grande herói. Até mesmo os outros líderes estudantis, companheiros próximos do protagonista, não possuem a sua inabalável integridade ética. Um deles chega a sonegar informação para que o líder possa se exilar na França.

Em várias falas o protagonista diz que a família que o acolheu não tem “culpa”, porque não se envolve com política. A política é realmente algo para poucos abnegados que lutam e se interessam pelo bem-estar do povo. Este deve se preocupar apenas com os seus estudos, com o seu trabalho e com a sua vida cotidiana, deixando que esses poucos o conduzam. A determinação e o caráter de Ibrahim é vista pelo espectador como algo louvável, mas, também, sobrenatural. Ao mesmo tempo em que queremos ser como ele, devido ao processo de identificação que se consolidou, consideramos que alguém como ele “é coisa de cinema”, afirmação que comprova que, apesar do uso de um pretenso “realismo”, o que sobressai é o espetáculo clássico e as convenções de representação.


 
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Créditos da postagem a mfcorrea, no MakingOff.

Licinio Azevedo - O grande bazar (2006)


Moçambique | Licinio Azevedo | 2006 | Drama | IMDB
Português | Legenda: Português (fixa)
  56min | XivD
608 x 352 | MPEG 1/2 L3 86 kb/s | 25.000 fps 
700 MB

O Grande Bazar
O filme centra-se na figura de Paíto, um moçambicano de 12 anos que, após ter sido roubado por um bando de rapazes, decide não voltar a casa enquanto não recuperar o que perdeu. Paíto passa a viver num mercado da capital moçambicana onde conhece Xano, um pequeno ladrão da sua cidade com o qual forja amizade e partilha aventuras. Vendedores, clientes, ladrões e a vida insólita do bazar constituem o pano de fundo. Pelos olhos do jovem Paíto percebemos bem de perto o que significa (sobre)viver numa cidade no sul de África. O filme aprecia com vagar ambientes e cenas comovedoras, transmitindo um olhar sem disfarce sobre o quotidiano.






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Créditos da postagem a chelsea girl, no MakingOff.

14 de abril de 2011

Encontro de Estudos Africanos - UFF - 16 a 19 de maio de 2011

ENCONTRO ESTUDOS AFRICANOS - UFF - 16 A 19 DE MAIO DE 2011.
Local: Campus do Gragoatá, sala 501 do bloco O - UFF
Inscrições: de 3 e 13 de Maio
Contatos: semanadaafricauff@yahoo.com.br


Informações sobre envio de trabalhos (clique)


Cine Afro Sembene Apresenta: Rastros, Pegadas de Mulher dia 16/04/2011

 
RASTROS, PEGADAS DE MULHER (Traces, empreintes de femmes), direção de Katy Léna Ndiaye. Documentário, 52 min.  Coprodução: França/Bélgica/Burkina Faso/Senegal, 2003, legendas em português. Classificação: 12 anos.

Sinopse: As pinturas murais das mulheres kassenas de Burkina Faso, perto da fronteira com Gana, são famosas pela beleza do traçado e pela harmonia de cor. Interessada no assunto, Katy Léna Ndiaye escolhe comparar tradição e modernidade, através do retrato de três anciãs e da "neta" que elas iniciam nas técnicas ancestrais. Ela realiza um filme com maestria estética, verdadeiro retrato de uma comunidade artística, por onde se discute a transmissão de ensinamentos, a educação e a memória numa África em mutação.



Sobre a diretora:

Katy Léna Ndiaye nasceu no Senegal em 1968, mas chegou à França, onde seus pais se instalaram, muito jovem. Há dez anos trabalha na Bélgica, em Bruxelas, onde exerce a profissão de jornalista. "Rastros, pegadas de mulher" é seu primeiro filme.






Local: CECISP – Centro Cineclubista de São Paulo
Rua Augusta, 1239, conj. 13 e 14 – São Paulo
Próximo a Avenida Paulista - Metrô Consolação
Horário: 19 horas - Entrada Franca

Informações: (011)3214-3906
http://www.centrocineclubista.blogspot.com
http://www.cineafrosembene.blogspot.com

Realização: Forum África

Colaboração:

Souleymane Cissé - Baara (1978)

 
Mali | Souleymane Cissé | 1978 | Drama | IMDB
Bambara | Legenda: Português/Inglês/Espanhol/Francês (no torrent)
90 min | XivD
592 x 352 | MP3 77 kb/s | 25.000 fps 
699 MB 
 
Baara 
Um jovem malinês deixa o campo para ir morar na cidade, onde passa a ganhar a vida como "baara", os trabalhadores de rua que carregam bagagens e mercadorias pela cidade. Um dia, ele conhece um jovem engenheiro, recém contratado de uma fábrica têxtil, e logo se tornam amigos, por terem vindo da mesma região do país. Isso lhe permite observar de perto o conflito por que passa o jovem engenheiro, dividido entre sua submissão ao cruel e explorador diretor da fábrica e sua simpatia pelos trabalhadores.







 
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Créditos da postagem a rpessoa, no MakingOff.

8 de abril de 2011

O cinema político africano e o direito de narrar

por Marcelo Ribeiro
 
O texto abaixo aborda o filme Bamako (2006), de Abderrahmane Sissako, a partir de uma revisão do conceito de cinema político. Dando continuidade à experiência de análise crítica de filmes que propus antes, procuro descrever as características estéticas do filme de Sissako, como uma base para interpretar as questões políticas absolutamente contundentes que o filme movimenta.


– O conceito de cinema político –
Um dos gêneros mais importantes dos cinemas africanos é sem dúvida o chamado cinema político. A denominação “cinema político” não está isenta de problemas – afinal, que critérios podem orientar a classificação? – e remete, em última instância, à própria definição de política – e, portanto, aos lances do jogo etimológico que liga a forma clássica da polis grega às formas contemporâneas de coletividade (em diversos níveis que, hoje, tendem a tomar o enquadramento nacional como referência, embora não se reduzam a ele). Entretanto, apesar do problemas, o conceito de cinema político permanece relevante, desde que seja deslocado.


Uma das objeções mais radicais ao conceito (no sentido de atacar suas raízes, seus fundamentos) costuma tomar a forma de uma generalização: “todo cinema é político”, dizem por exemplo Eduardo Valente e Ruy Gardnier num editorial da Contracampo, uma vez que “toda ação humana é em si política”. No entanto, partir de um conceito amplo de política e dizer que “todo cinema é político” pode nos impedir de compreender as configurações cinematográficas da questão da política, simplesmente por tornar impossível reconhecê-las. Não se trata de saber o que define restritivamente o cinema político – como se fosse possível aplicar critérios temáticos para classificar um filme como político ou não, de acordo com uma concepção bastante usual da política como esfera separada da vida coletiva. Sem dúvida, a força dessa concepção se deve à adesão, muitas vezes cega, aos discursos dominantes nas democracias representativas ocidentais, que diferenciam formalmente a política da arte, da economia ou da religião, entre outras, e neutralizam, dessa forma (pelo desconhecimento e pela recusa de reconhecimento), as múltiplas zonas de indeterminação em que as esferas da vida coletiva se indiferenciam.


Um dos sentidos do deslocamento necessário para o conceito de cinema político consiste na passagem de uma concepção restrita da política como esfera separada (o que poderia ser chamado mais certamente de governo, como sugere a Flávia Cera) para uma concepção generalizada da política como construção de um mundo comum. Assim, o cinema político não designa apenas o conjunto de filmes que retratam a esfera da política (no sentido restrito) e os políticos – como é o caso do contundente Xala (Ousmane Sembène, 1975) – nem tampouco os filmes que abordam temas geralmente discutidos na esfera da política (isto é, objetos de políticas públicas governamentais, tanto em âmbito nacional quanto internacional) – como é o caso de Moolaadé (Ousmane Sembène, 2004). Com efeito, a intensidade política desses e de outros filmes do senegalês Ousmane Sembène resulta, em parte, do fato de não abordarem a política como esfera separada, impedindo sua sacralização como espaço decisório.


Precisamos devolver ao cinema sua potência política. Em primeiro lugar, é preciso saber em que consiste a potência política do cinema – de todo cinema – incluindo, entre outros tipos de filmes, as comédias românticas mais individualistas (afinal, o pessoal é o político) e as ficções científicas mais apocalípticas (afinal, se a política como esfera separada se preocupa com o futuro previsível do planejamento governamental, a política irrestrita se interessa no porvir como advento, sempre monstruoso, do novo). Contudo, em vez de dizer simplesmente que “todo cinema é político” (arriscando um esvaziamento da questão da política que corresponde, como seu oposto completo, à sua separação), é preciso reconhecer que, se todo cinema tem (ou pode ter) efeitos políticos, na medida em que existe no mundo comum, o cinema político consiste num certo tipo de cinema (e não todo cinema): aquele que se engaja no questionamento e na exploração de seu próprio caráter político. Se, do ponto de vista de seus efeitos, todo cinema é potencialmente político (porque pode produzir efeitos no mundo comum que compartilhamos), do ponto de vista de sua intencionalidade e, principalmente, de suas características estéticas, só é político o cinema que interroga e intensifica a sua própria potência política, disseminando sua deriva interrogativa.


– Bamako como cinema político –
Um dos propósitos mais recorrentes dos cinemas africanos consiste na busca por outras imagens da África e de suas paisagens culturais. Diante do exotismo colonialista que se prolonga no regime ocidentalista de escritura da ‘África’ e se investe com o que Edward Said chama de “poder de narrar” (e, portanto, de excluir outras narrativas), os cinemas africanos têm como impulso originário, mesmo que eventualmente subterrâneo e inconsciente, a reivindicação do direito de narrar. Eis a sua condição política originária. No entanto, se todos os cinemas africanos carregam a potência política da reivindicação do direito de narrar, o cinema político africano pode ser identificado naqueles filmes que interrogam e exploram (de forma consciente, por assim dizer) a questão da política da narrativa como condição originária de sua própria existência. É justamente o que está em jogo no filme Bamako (2006), de Abderrahmane Sissako, que faz soprar novos ares na tradição mundial do cinema político ao construir e desconstruir, ao mesmo tempo, um dispositivo ficcional: o julgamento de um processo da “sociedade civil africana” (representada pelo povo do Mali) contra as instituições financeiras internacionais (representadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional) e suas políticas de ajuste estrutural, seus ditames econômicos sabidamente desastrosos, seu papel reconhecidamente problemático na promoção global da insustentabilidade.


O processo se passa no quintal de uma casa em Bamako e esse cenário – que é a casa do pai de Sissako – exemplifica um recurso importante do cinema de Sissako: a autobiografia, que para ele deve se desdobrar como abertura para o outro (um tema que merece ser abordado a parte, quem sabe, em outro texto). O dispositivo elaborado pelo diretor consiste em três câmeras fixas destinadas à captação do julgamento – uma voltada para a corte, duas voltadas para a bancada de testemunhas (uma frontal e outra lateral) – e em uma câmera em movimento – que passeia pelo quintal, mostra ângulos diferentes da corte, dos advogados e das testemunhas, registra os movimentos da plateia e as inúmeras irrupções do cotidiano que interrompem o processo, introduzindo seu ritmo mundano na mecânica regrada do julgamento e se fazendo registrar igualmente pelas câmeras fixas. Entre os diversos elementos do cotidiano, adivinham-se os traços sugestivos, embora incompletos, de outras “memórias de gênero”, suplementando o “filme de tribunal”: um melodrama familiar se desenrola entre Melé e Chaka, um casal cuja filha está doente e cuja relação passa por uma crise profunda, enquanto um detetive realiza uma investigação policial em torno do sumiço ou do roubo de uma arma. Entre os fios narrativos articulados, embora disjuntos, o que se entrevê são os afazeres e os acontecimentos mais variados que compõem um panorama do cotidiano – mulheres tingindo tecidos, crianças brincando e chorando, a celebração de um casamento etc.


No julgamento, a parte civil é representada por uma equipe encabeçada pela senegalesa Aïssata Tall Sall e pelo francês William Bourdon, enquanto a defesa fica por conta da equipe do burquinabê Mamadou Savadogo, do maliano Mamadou Konaté e do francês Roland Rappaport. São advogados e advogadas profissionais que interpretam a si mesmos como outros, assumindo posições na tecelagem da ficção do processo, como atores não-profissionais (o que exemplifica de forma contundente a herança neo-realista que marca o cinema de Sissako). É curioso o exemplo de Roland Rappaport: no filme, ele é o responsável pela argumentação final da defesa das instituições financeiras internacionais; fora do filme, sua atuação como advogado o aproxima justamente da posição contrária, de questionamento do papel dessas instituições no mundo contemporâneo. A corte é composta pelo presidente do tribunal, Hamèye Founé Mahalmadane, assessorado por Mariam Cissé, Alou Diarra e Oumou Berithé Diakité. À busca por profissionais do direito se acrescentou a busca por testemunhas, que foi feita sobretudo junto a associações. Por fim, as pessoas da cidade foram convidadas para o julgamento, cujos depoimentos assistem de dentro do quintal ou escutam do lado de fora, cujos trâmites ignoram, interrompem ou respeitam, cujo desfecho aguardam ou antecipam.


A partir de suas trajetórias e de seus conhecimentos, os depoimentos que as testemunhas oferecem movimentam diversas questões cruciais para as políticas governamentais contemporâneas (remetendo à concepção restrita de política da modernidade): a produção agrícola e industrial e a organização dos mercados nacionais e internacionais; as privatizações, o papel dos Estados nacionais e seu desmonte no contexto do neoliberalismo; as migrações e as experiências de deslocamento que povoam as faces da Terra. A escritora Aminata Dramane Traoré, ex-Ministra da Cultura do Mali, argumenta que a África é vítima de suas riquezas, e não da pobreza. Madou Keita narra uma experiência trágica de migração através do deserto. O professor Georges Keita discute as economias nacionais dos Estados africanos e seu papel nos problemas que os países do continente enfrentam. Samba Diakité recebe a palavra para ser ouvido pela corte mas, depois de dizer seu nome e outras informações exigidas pelo protocolo, permanece calado sobre todo o resto, com um silêncio contundente. Assa Badiallo Souko denuncia as políticas de privatização em meio ao neocolonialismo das multinacionais.


Em Bamako, o aparelho cinematográfico acolhe um acontecimento singular, abrigando na ficção – no cerne do falso que existe apenas para aparecer na tela – uma potência política que permanece contida, silenciada e neutralizada na realidade jurídico-política em que nos encontramos. Em Bamako, o cinema começa a fazer justiça, suplementando a injustiça perpetrada pelas instituições que se inscrevem paradoxalmente sob o signo da justiça, da humanidade e da cooperação internacional. A justiça que se faz pelo cinema – e que permanece interminável, por vir – encontra seu impulso primeiro no desejo de dar uma outra imagem da África (e do mundo) e na reivindicação de um direito de narrar. Esse desejo e essa reivindicação constituem não apenas a condição originária dos cinemas africanos, como afirmei acima, mas também temas centrais que atravessam Bamako e ligam os depoimentos das testemunhas, o julgamento como dispositivo, as interrupções que o cotidiano acarreta… entrelaçando todos os fios da narrativa.


O julgamento se abre – antes mesmo de começar – com a questão da palavra, de sua potência e de sua dádiva interdita: o camponês Zegué Bamba se dirige à corte sem que lhe tenha sido dada a palavra e tem sua participação interditada pelo tribunal. A palavra interdita no início – isto é, proibida, mas também: dita nas margens, nos interstícios, nos intervalos do processo da história – assombra todo o julgamento, até que, mais à frente no filme, seu fantasma toma corpo numa irrupção, interrompendo os trâmites protocolares: com um canto inesperado, entre o pleito final da defesa e aquele da parte civil, Zegué Bamba faz soar uma língua que, para a maioria dos espectadores do filme, permanecerá estrangeira (pois Sissako não oferece qualquer legenda), exceto pela menção a ela no pleito da parte civil. Em todo caso, na bancada de testemunhas – que representa, no dispositivo do julgamento, o lugar da transparência comunicativa da palavra – o canto de Zegué Bamba introduz a opacidade incompreensível de uma estrangeiridade, que remete ao que Nwachukwu Frank Ukadike chama, no livro Black African Cinema, de “African traditional media”, isto é, mídias ou meios tradicionais africanos (o que costumamos designar com o nome de tradições orais). Assim como o canto de Zegué Bamba, a narrativa de Madou Keita e o silêncio de Samba Diakité introduzem na bancada de testemunhas o tema do direito de narrar.


Outra instância do tema do direito de narrar é o faroeste Death in Timbuktu, em que o próprio Sissako, o diretor palestino Elia Suleiman, o ator estadunidense Danny Glover, o diretor congolês Zeka Laplaine e outros representam uma estranha paródia dos westerns que povoam a imaginação cinematográfica mundial e que constituem uma das heranças mais marcantes de Hollywood. Reunidos diante da televisão, crianças, homens e mulheres assistem ao trecho de um filme inexistente. Segundo Sissako, Death in Timbuktu “foi uma maneira de mostrar que os cowboys não são todos brancos e que o Ocidente não é o único responsável dos males da África. Nós temos, nós também, nossa parte de responsabilidade.” A interpretação do diretor revela uma outra dimensão da questão do direito de narrar: juntamente com reivindicação da possibilidade de narrar sua própria história e de que ela seja reconhecida por outrem, o direito de narrar codifica, em Death in Timbuktu, a possibilidade de assumir a responsabilidade por sua própria história. (Um lado perverso e ambivalente do humanismo ocidental consiste justamente na vitimização do outro que se pretende salvar – desde a “missão civilizadora” que alimentou o projeto colonial até os discursos de ajuda humanitária e solidariedade transnacional que se associam cada vez mais a intervenções militarizadas – como se o outro não fosse capaz de agir por si mesmo, de modificar suas condições e de lutar contra os problemas que o afetam, precisando por isso de ajuda externa.) A violência gratuita dos cowboys, que assassinam um dos dois professores de um povoado (pois dois é demais, como dizem), remete à situação recorrente, na África pós-colonial (analisada, entre outros, por Achille Mbembe), de privatização do poder por figuras de autoridade que, em geral, se beneficiaram de sua atuação política nacionalista na luta pela independência e se converteram em ditadores que orientam seus governos para seus ganhos pessoais.


É sobre o pano de fundo da condição pós-colonial na África que pode se tornar legível o sonho de Samba Diakité, contado a Fodé e a Jean-Paul do outro lado do muro do quintal, depois de cortado o som do auto-falante que transmite o julgamento: “Eu tenho toda noite um sonho que me perturba. [...] Eu estou na escuridão… a luz… Em todo caso, não estou em casa. Nesse sonho, estou sentado e, diante de mim, há um grande saco. Ele está cheio de cabeças de chefes de Estado. Cada vez que eu mergulho minha mão lá dentro, é a mesma cabeça que eu pego. E quando eu a coloco de volta, meu sonho acaba e eu acordo. [...] Eu não sei se é um negro ou um branco. Em todo caso, é a mesma cabeça.” Exterior ao julgamento, o sonho perturbador de Samba Diakité tem como objeto central os chefes de Estados africanos, que são mencionados literalmente nos depoimentos e aparecem metaforicamente (ao menos na minha leitura) como parte do pano de fundo que dá sentido a Death in Timbuktu. Sem pretender interpretar de forma mais sistemática o conteúdo manifesto que as palavras de Samba Diakité reconstituem como seu sonho recorrente, seu pesadelo assombroso, que o assola a cada noite, é possível dizer que se trata de um dos elementos vitais (sejam fictícios ou não, pouco importa) que transbordam o enquadramento do dispositivo fictício do julgamento, num movimento crucial para a compreensão do filme.


A justiça que só o cinema se revela capaz de fazer, de criar, no dispositivo fictício elaborado por Sissako, não equivale a uma representação da justiça institucional (isto é, à encenação de um julgamento convencional, mesmo que imaginário), ultrapassando incessantemente suas fronteiras. Para fazer justiça, o aparelho cinematográfico deve se manter aberto: o filme só constrói a ficção na medida em que desconstrói seu dispositivo, abrigando inúmeros traços da vida que pulsa no cotidiano, no sonho de Samba Diakité, nos tecidos que as mulheres tingem, nas crianças que passeiam pelo quintal, no bar ao som das músicas cantadas por Melé. A construção da ficção do julgamento se entrelaça com a desconstrução de seu dispositivo, impulsionada pelas irrupções da vida, isto é, pelo que acontece – e isso inclui, em última instância, a morte. É o que se passa entre Melé, seu marido Chaka e sua filha Ina, delimitando um eixo melodramático que atravessa o filme e, embora não tome conta de seus ritmos, dá a seu desfecho um peso simbólico talvez insuportável. Diante da morte, o cinema de Abderrahmane Sissako assume, em Bamako, a tarefa política de imaginar – outra-mente – a vida possível.

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Marcelo é pesquisador e professor nas áreas de cinema e antropologia. Atualmente, é estudante de doutorado em Estudos Cinematográficos na Université de Montréal, onde desenvolve pesquisa sobre cinema e cosmopolitismo. - Blog do autor

Texto publicado no blog Amálgama, em 08/04/2011.

7 de abril de 2011

Lançamento da Coleção História Geral da África (Belo Horizonte)

A Representação da UNESCO no Brasil, o Programa Ações Afirmativas na UFMG e o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação - NEPER/UEMG convidam:

LANÇAMENTO DA COLEÇÃO 
HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA 
EM BELO HORIZONTE

Dia 13 de abril de 2011, quarta- feira 
Horário – 08:30h às 18:00h

 
Programação:
08:30h - Recepção - Grupo de Choro da Escola de Música da UFMG
09:00h - Sessão solene de lançamento da Coleção História Geral da África
10:30h - Mesa: Brasil-África: Heranças Históricas: Perspectivas Contemporâneas
15:00h - Mesa: Diáspora Africana: Território, Identidade Negra e Educação.
17:00h - Mesa: História da África e Cultura Afro-brasileira: Perspectivas Educacionais


Local – Faculdade de Educação da UFMG - Auditório Neidson Rodrigues
Av. Antônio Carlos 6627 – Pampulha – BH/MG


Informações acesse:  

3 de abril de 2011

Mark Dornford-May - U-Carmen eKhayelitsha (2005)


África do Sul | Mark Dornford-May | 2005 | Musical | IMDB
Xhosa | Legenda: Português
122 min | XivD
544 x 336 | MPEG1/2 L3 128 kb/s | 25.000 fps 
999,7 MB

 U-Carmen eKhayelitsha / Carmen na África
Adaptação da ópera "Carmen", de Bizet, transposta para a cidade de Khayelitsha, na África do Sul dos dias de hoje. Carmen é uma trabalhadora que seduz um policial. Ele se torna completamente obcecado pela mulher, que resolve abandoná-lo. É tomado então por um acesso de ira e ciúme. A versão do diretor Mark Dornford-May combina músicas da ópera original com arranjos de música tradicional Africana. U-Carmen foi traduzida para Xhosa por Andiswa Kedama e Pauline Malefane, que no filme representam Amanda e Carmen respectivamente.
Ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim 2005.

 
 

Crítica: Carmen na África

No início dos anos 80, chegaram aos cinemas três versões diferentes para a paixão obsessiva do soldado Don José pela cigana Carmen, escrita por Prosper Merimé. Exceção feita a Prénom Carmen, de Jean-Luc Godard, os filmes de Carlos Saura e de Francesco Rosi tinham por trás a sombra opressiva da ópera de Bizet – que se encontra, junto aos afrescos da capela Sistina de Michelangelo, à Monalisa de Leonardo Da Vinci, às sinfonias de Beethoven, ao Dom Quixote de Cervantes e às tragédias de Shakespeare, no seleto panteão das mais famosas criações artísticas da espécie humana. Em Carmen na África, surpreendente Urso de Ouro do último Festival de Berlim, o diretor Mark Dornford-May e o grupo Dimpho Di Kopane levam a tragédia de Merimé/Bizet para a periferia miserável e negra da África do Sul, enfrentando o mesmo problema que em geral assola as adaptações cinematográficas de óperas: a incapacidade de transpor a inverossimilhança teatral das ações e dos sentimentos operísticos para o espaço pretensamente realista engendrado pela narrativa fílmica.

Carmen na África se inicia com travellings que descortinam o gueto miserável de Sevilha, em Capetown. Referência nada sutil à cidade onde se passa a ópera de Bizet e o romance de Merimé, o subúrbio negro indica a tentativa de Mark Dornford-May de conectar o naturalismo do ambiente representado no filme à fantasia romântica contida nas obras que lhe servem de base. O projeto de misturar as árias cantadas pelos personagens com a narrativa dramática convencional (que pretende dar ao espectador a ilusão de realidade), porém, naufraga uma vez que, se na ópera a música se apresenta como a força-motriz que de fato leva os acontecimentos à frente, no filme as seqüências explicitamente operísticas apenas diluem a paixão trágica entre Carmen e Dom José, ao se contraporem e, em conseqüência, soarem forçadas em relação às demais cenas que integram Carmen na África. Em outras palavras: enquanto o clássico de Bizet se torna crível pelo respeito que mantém aos cânones do meio para o qual foi destinado, a adaptação de Mark Dornford-May se faz inverossímil na medida em que sujeita os números musicais aos ditames da estrutura cinematográfica, transformando aqueles em meros apêndices desta.

Para o cineasta, também está em jogo o suposto caráter universal da história criada por Merimé e consagrada por Bizet, que poderia ser transposta para qualquer época e para qualquer lugar. O resultado, visto em Carmen na África, mostra a busca pela fidelidade total ao enredo, ao mesmo tempo em que se verifica a adequação da trama ao contexto específico sul-africano. No entanto, as soluções encontradas por Mark Dornford-May são, mais das vezes, esdrúxulas: a Carmen que trabalha para a tabacaria Gipsy, em referência à origem cigana que ela possui na ópera; o tenor que surge vestido de toureiro na televisão, pois interpreta no filme o papel que corresponde, na ópera, ao da terceira ponta do triângulo amoroso que propicia a tragédia; a praça de touros transformada em igreja evangélica; o Dom José que, em lugar de soldado do exército, faz-se membro da polícia. Embora permaneçam atuais as ingerências a respeito da corrupção policial, dos abusos de autoridade, da pobreza generalizada das classes mais baixas e do contrabando como modelo possível de vida e alimentador da violência dentro da sociedade, as tentativas de associar os comportamentos dos personagens a traumas psicológicos advindos do passado do país – marcado pela política do apartheid – somente reiteram o empobrecimento da potência emocional existente na relação entre o ciúme de Don José e o anseio por liberdade de Carmen.

Carmen na África fica no meio do caminho entre a ópera e o cinema. Ao respeitar excessivamente Bizet, Mark Dornford-May acaba por traí-lo, já que trata a paixão desmedida, que leva os personagens à tragédia, como mero elemento decorativo da narrativa burocrática que conduz.
  
Paulo Ricardo de Almeida (Fonte)


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